quinta, 19 setembro 2024

17/08/2023 10:35

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O caso Carivaldo Salles

Trago hoje à memória um julgamento que aconteceu há quase 70 anos, na cidade e comarca de Corumbá, que ficou conhecido como o Caso Carivaldo Salles.

Trago hoje à memória um julgamento que aconteceu há quase 70 anos, na cidade e comarca de Corumbá, que ficou conhecido como o Caso Carivaldo Salles.

Tive o privilégio de ter ouvido fontes diretas e semi diretas sobre esse caso, que me deram detalhes sobre esse importante julgamento que marcou a história do foro criminal do sul de Mato Grosso.

Edu Rocha era vereador em Corumbá e estava empenhado em denunciar na tribuna da Câmara Municipal o bando de Carivaldo Salles, inspetor da alfândega de Corumbá, acusado de chefiar um esquema de contrabando de cadilacs, chamados de “rabos-de-peixe”.

O jornalista e historiador Sérgio Manoel Cruz, em sua riquíssima pesquisa sobre Mortes e Crimes Violentos na História de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul entre os anos de 1730 e 2020, relata que o crime ocorreu em 20 de junho de 1959.

Segundo o seu precioso relato, a revista “O Cruzeiro”, tida como o principal órgão da imprensa brasileira na época, publicou que, naquela noite, Carivaldo Salles compareceu à Câmara Municipal de Corumbá extremamente ansioso, fumando “um cigarro após o outro”.

De acordo com a publicação mencionada por Sérgio Cruz, após discurso rotineiro pronunciado pela vítima, o vereador Edu Rocha, “Carivaldo saiu e foi sentar-se em seu automóvel vermelho e capota cinza, tal qual uma fera traiçoeira”.

No volante do automóvel, segundo a publicação de O Cruzeiro, estava o capanga do inspetor, “pistoleiro de má fama e temido pela sua periculosidade”, que alvejou Edu Rocha com uma “rajada fatal, entrecortada por um gemido fraco”.

As fontes não confirmam se Carivaldo permaneceu preso durante todo o processo, mas é certo que, na data do julgamento, que se deu em 24 de outubro de 1963, o réu estava preso, tanto que pelo menos dois jurados foram visitá-lo na véspera, o que ensejou o oferecimento de exceção de suspeição de um dos jurados sorteados, pelo assistente de acusação, o saudoso advogado Nelson Trad, que impulsionou sua carreira na advocacia criminal no Estado após atuação no caso Carivaldo.

Segundo relato de Nelson Trad,em entrevista concedida sobre o caso, a que este colunista teve acesso, a exceção de suspeição do jurado sorteado que havia visitado o réu na carceragem na véspera do julgamento restou acolhida pelo juiz presidente do Tribunal do Júri, o Dr. Leão Neto do Carmo, que hoje dá nome à Avenida onde se encontra sediado o gabinete dos desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

O acolhimento da exceção de suspeição do jurado se deu após o carcereiro, presente no julgamento, confirmar que o jurado havia visitado o réu no dia anterior, gerando um burburinho entre os presentes e prenunciando os acalorados debates que se seguiriam naquela sessão.

O réu havia trazido para defendê-lo ninguém mais, ninguém menos, do que Alfredo Tranjan, famoso tribuno carioca, que veio a publicar anos depois o livro A Beca Surrada – Meio Século no Foro Criminal.

Ao lado de Tranjan, na tribuna da defesa, estava o advogado Carlos Giordano, que já era famoso naquela época no sul do Estado de Mato Grosso por sua poderosa oratória.

Junto com Tranjan e Giordano na bancada da defesa, um jovem e talentoso advogado se fazia presente e lhes prestava auxílio. Tratava-se de Carlos Bobadilla Garcia, que veio a se tornar membro do Ministério Público e procurador geral de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul.

Segundo relatos de publicações da época, Carivaldo Salles tinha grande poder político e financeiro e usou de toda a sua influência para pressionar as autoridades e a sociedade para sair livre e impune. O desembargador Barros do Valle, que analisou um dos Habeas Corpus impetrado pela defesa de Carivaldo, chegou a registrar sua perplexidade e debitou à covardia e à interesses subalternos o injustificável tumulto causado pela “justiça de Corumbá”, após cinco juízes darem-se por suspeitos ou impedidos no curso do processo.

De acordo com a revista O Cruzeiro, como o sorteio dos 21 jurados se dera com 43 dias de antecedência, houve “tempo para que funcionassem tranquilamente a corrupção e a intimidação, embora vários deles (jurados) nem disso precisasse, por suas notórias ligações com Carivaldo, sua família e seus negócios”.

Os debates tiveram início e se estenderam até a madrugada do dia seguinte. Esperava-se que o criminalista Alfredo Tranjan “fosse engolir o jovem Nelson Trad, recém saído da faculdade”, todavia Nelson Trad impressionou a todos os presentes, não só pela sua habilidade oratória, mas também por conhecer a fundo o processo. Era, segundo ele próprio relatou, a arma que tinha para enfrentar a velha raposa carioca.

Uma pessoa que estava presente no julgamento se recorda de memória de um momento dramático, quando Nelson Trad exibiu a camisa da vítima perfurada e manchada de sangue, causando comoção nas pessoas presentes.

Mas, a acusação, tida por impecável e implacável, a tudo sucumbiu. Não adiantou nem mesmo “a carta aberta que no dia do crime Carivaldo Salles fez publicar na imprensa local, ameaçando Edu Rocha”, a vítima, “tampouco o depoimento de Artigas Vilalba, contra o réu, de quem era auxiliar de confiança”.

O júri absolveu Carivaldo por 5 votos contra 2.

Imediatamente após o julgamento, contam os registros, o promotor José Mirrha foi pressionado pelos familiares do réu para não recorrer.

Enquanto isso, Nelson Trad, que havia assumido corajosamente o processo, após inúmeros advogados terem sido sondados e recusado a funcionar como assistente da acusação, preparava-se para deixar Corumbá em segurança, junto com sua esposa Therezinha e seus pais Assaf Trad e Margarida Maksoud Trad.

Já dentro do vagão do trem para voltar à Campo Grande, ouviu-se um forte estrondo.

Era o carcereiro, que havia atestado ter presenciado um dos jurados ter ido visitar o réu na carceragem, implorando para entrar no vagão e também deixar Corumbá em segurança.

O promotor José Mirrha não cedeu à pressão e recorreu da absolvição.

Esta coluna não obteve informações mais precisas acerca do segundo julgamento e segue aberta e em diligência para, quem sabe, publicar a parte dois deste artigo.

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